Na floresta, ocultam-se os mais sombrios segredos. Tão sombrios que seus habitantes preferem guardar para si mesmos, no silêncio de sua carne.
Mas a verdade sempre surge.
Häss a observava ao longe. Ela era um prodígio na música, no canto e na arquearia, além de se portar de forma elegante e suave quase sempre. Ela cantava no lago, sentada nas pedras das margens, conversando com as jovens que se banhavam no lago. Häss só tinha olhos para ela.
Hälle se escondia nos arbustos para observar o treinamento do jovem. Ele se desenvolveu como um jovem forte e habilidoso. Não havia nenhum igual da sua geração na caçada e no combate, e nas horas vagas ainda dedicava-se à magia, à pintura e à poesia. Não só Hälle o admirava, como todas as jovens elfas da comunidade já o desejavam como marido. O coração da pobre moça doía ao pensar nisso, pensar que ele estaria longe.
Mas Häss só tinha olhos para ela. Não aceitaria nada além dela. Hälle era seu mundo, e sua maldição.
Quando mais novos, Häss e Hälle desobedeceram as ordens dos anciãos e das anciãs e foram para a floresta em um dia de festividade sagrada, para caçar. Encontraram um belo veado, maior que todos que já haviam visto, corpulento e acompanhado de um cortejo de todos os seres mágicos. Seus chifres e cascos brilhavam como ouro, seus olhos eram dourados e possuíam um brilho próprio muito encantador. As suas galhadas queimavam com chamas alaranjadas que dançavam acima da cabeça da criatura.
Häss e Hälle tentaram acertar o veado com pedaços de paus e pedras, buscando uma forma de capturar o animal. O veado olhou intensamente para os dois, que ficaram paralisados, enquanto de suas galhadas flamejantes saíam borboletas de todas as cores que avançaram para as duas crianças.
Häss e Hälle foram encontrados no chão nas proximidades da comunidade, dormindo. Quando encontraram as duas crianças, os guerreiros foram chamar de imediato os anciões e as anciãs, além da mãe das crianças, que notaram estranhas manchas em forma de borboleta por todo o corpo delas. Uma das anciãs já havia ouvido falar de um caso parecido, e avisou que poderia ser uma maldição jogada nas crianças, um alerta que deixou todos temerosos.
Porém, ao ver que as duas crianças cresciam bem e fortes, a mãe logo se tranquilizou e até a anciã mudou de ideia e disse que os deuses talvez houvessem perdoado as pestinhas.
Não havia nada de errado com Häss, muito menos com Hälle. Eram trabalhadores, educados, obedientes aos mais velhos e dedicados às tarefas e obrigações. Mas um olhar atento notava que havia pelo menos algo incomum entre os jovens. Tanto Häss quanto Hälle eram desconcertantemente atraentes, quase mágicos, além de que, estranhamente, desde aquele evento na mata, Häss e Hälle não suportavam ficar muito tempo longe um do outro.
Foi ficando mais difícil com a chegada da juventude. Hälle penteava seus cabelos azulados por longas horas e sempre estava impecável, mesmo que seu sorriso usual nunca fosse tão sincero e cintilante quanto quando via o jovem Häss. Em seu coração, ela temia profundamente não poder estar mais tão perto dele, mesmo que o sorriso de Häss dissesse o contrário, e sempre respondesse ao dela, quase como uma declaração silenciosa.
As marcas das borboletas, que eram de um negro profundo, foram ganhando uma cor azulada intensa, e agora era impossível não notar, inclusive em seus rostos, o que atraía ainda mais os olhares curiosos ao redor dos jovens.
Häss se contorcia por dentro a cada cortejo feito a Hälle, que ela prontamente negava, mas que ele temia que ela aceitasse um dia. Talvez fosse melhor, mas pensar nisso lhe doía profundamente.
Nenhum dos dois gostava da ideia de não poderem ficar mais tão próximos, mas era inevitável naquela altura, e não lhes era permitido que ficassem juntos. Nem sabiam o que estavam sentindo, e já tinham certeza do que queriam.
Antes, a proximidade era doce e gentil. Brincavam juntos, quebravam regras juntos, dormiam juntos. Mas com o tempo, a proximidade passou a ser dolorosa. Os mais leves toques queimavam em chamas ardentes, e os mais rápidos olhares arrepiavam até a alma, uma sensação de uma carga elétrica poderosa transpassando rapidamente seus corpos.
Agora, dormiam separadamente e faziam todas as tarefas que jovens da sua idade fazem, preparando-se para a vida adulta. E justamente por suas tarefas diárias, estavam se afastando gradativamente. Häss e Hälle perceberam isso, e estavam dispostos a evitar que esse afastamento fosse permanente.
Häss entregava poesias e presentes para as amigas de Hälle, em nome de um "pretendente misterioso" que buscava desposá-la. Ela lia todas as poesias e guardava com o maior carinho, pois sabia que era de seu amado.
Hälle tratava de arrumar todas as desculpas possíveis para levar ao seu irmão a comida e os amuletos que ela fazia. Häss exibia seus amuletos com orgulho, e até ganhou combates com eles, o que indica que as proteções dela são poderosas. Os pratos que ela preparava para ele eram os mais saborosos, o que gerou inveja em certas pretendentes de Häss, que viam na proximidade um ataque pessoal. Afinal de contas, mais de uma vez Hälle foi elogiada pelos pratos que fazia e como, além de serem magicamente encantadores como ela, parecia deixar quem ingeria de alguma forma com mais ânimo para viver.
Logo notou-se que, por estar bem alimentado por sua irmã, Häss se fortalecia e se tornava um combatente ainda mais difícil de superar a cada dia. Em certo ponto, as pretensões a casamento dirigidas a Hälle cessaram, pois os jovens tinham medo de que Häss fosse matá-los se tentassem.
Vendo a situação complicada que se formava no horizonte, a mãe de Häss aconselhou-o que se afastasse da irmã, pois ele estava prejudicando o futuro dela. Furioso, Häss se enfiou na floresta, retornando com um tigre arrastado e amarrado em cordas. O tigre foi trucidado depois de um embate sanguinolento, que deixou marcas e sangue na pele do jovem. Häss parecia um monstro: estava maior, mais forte, e seu olhar cansado e furioso aterrorizou a todos que olhavam, fazendo com que sua mãe visse o que seu filho havia se tornado. Häss entregou o tigre à mãe, para que fosse repartido para a comunidade.
Desde aquele momento, ninguém mais se atreveu a mexer com ele e Häss se tornou rapidamente o herói da comunidade. Porém os rumores surgiram e Hälle foi diretamente atacada por eles. Diziam que Häss era apaixonado por ela pois ela havia o seduzido com suas magias profanas, e que ele acabaria a matando. Hälle negava tudo, e em certo ponto, passou a fingir que nada acontecia.
Mas acontecia. Na escuridão da noite, iluminada pela lua e pelos espíritos, Häss e Hälle se encontravam, não conseguindo mais resistir a essa força que os unia. Ali, ninguém os via. Estavam sob a benção dos espíritos e dos deuses, e nada poderia lhes ferir ali. Se entregaram aos sentimentos mais profundos, vínculos vindos desde o ventre da mãe, de onde vieram ao mundo juntos, como naquele momento. Seus toques eram ainda mais flamejantes, mas não sentiam mais a dor; seus olhares mais intensos, ao ponto de compartilharem de uma mesma energia.
Compartilharam afetos, lembranças, beijos e abraços, carinhos e energias, por dias, por meses...
Até que sua liberdade cobrou um preço. Hälle passou mal, sendo que não costumava adoecer, o que levantou suspeitas. Quando as anciãs viram, ficaram horrorizadas: Hälle carregava uma criança no ventre.
Mas quem era o pai?
Quem odiava Hälle naquela altura a acusou de ter seduzido o próprio irmão. Mesmo sem saber se aquela história tinha algum fundo de verdade, expulsaram Häss da comunidade, o renegando às florestas. Desde então, ele não foi visto.
Um bom tempo depois, a primeira criança nasceu. Possuía uma beleza encantadora, o que incitou o ódio de outras mães à criança inocente. As outras mães diziam que aquela criança era filha de um animal e de uma feiticeira, e que sua presença na comunidade era uma ameaça.
Os maridos dessas mulheres, convencidos por elas, pegaram em armas e se prepararam para trucidar a mãe e a criança, mesmo que para isso tivessem que eliminar a avó junto. A criança era filha do monstro e era uma ameaça.
Häss se aproxima da comunidade e vai visitar Hälle mais uma vez, quando a encontra cercada por uma dúzia de guerreiros. Ele parte para cima dos guerreiros, derrubando e matando todos que estavam no seu caminho, quando reforços da comunidade chegam, o ferindo mortalmente. Ele olha para Hälle, e ela foge o mais rápido que pode, com seus olhos em lágrimas, mas algumas das mulheres estavam prontas para a fuga com facas e arcos. Uma das flechas estava envenenada e atravessa o peito da mãe, ferindo a criança. A pequena menina que havia nascido recentemente estava tossindo e desfalecendo. A mãe, desesperada, tentava chamar pela filha, mas logo também morreria.
Um tigre surge das sombras e arrasta rapidamente o corpo de Häss. Seus dentes cravavam fundo na carne, mas o herói já havia sido abatido. O seu corpo é posto próximo ao de Hälle e da criança, onde o tigre monta guarda, esperando por algo das profundezas da floresta.
O veado branco de chifres flamejantes olha para os corpos desfalecidos e logo desvia o olhar, com o tigre se afastando e sumindo nas sombras. O veado segue em frente, sendo seguido pela sua procissão de espíritos que cuidadosamente carregou os corpos até um lago brilhante. Os três corpos foram mergulhados ali, com o cervo emanando suas borboletas e com a procissão de espíritos tocando a água, que brilhava com mais intensidade.
Hälle acorda sem entender o que havia acontecido e procurando sua filha. Se perguntava como ainda estava ali se a flecha havia perfurado seu peito.
Nesse momento, Häss se ergue das águas com sua filha nos braços, que havia retirado das águas. Seus olhos marejavam e Hälle podia ver todo o amor paterno que nascia no coração de seu amado ao ver a menina.
O veado fez um gesto para que o casal o acompanhasse, e foi o que fizeram. Foi uma caminhada longa, com algumas paradas para amamentar a criança e para descansar, até que chegaram em uma parte da mata povoada de criaturas mágicas de todos os tipos. Ao chegarem, foram cumprimentados por muitas das criaturas dali, algumas até curiosas com a menina que ali chegava e que parecia familiar a eles.
Aquele seria o lugar onde poderiam viver em paz e seguros.
Maëlla, a criança, foi a primeira de muitas crianças que ainda estariam por vir. Häss e Hälle seriam origem de uma vasta descendência, que povoaria as matas ocultas e que cuidaria daquelas terras por muito tempo.
Häss e Hälle encontraram ali um local pacífico para viverem finalmente unidos. Häss ainda faz poemas para sua amada, caça os animais mais fortes e suculentos com os quais Hälle, com suas habilidades sobrenaturais, faz os seus pratos abençoados, o que dá força aos seus filhos e filhas, guerreiras e guerreiros das terras dos espíritos. Hälle dedica-se também à arquearia e às artes mágicas, o que garante que ela nunca mais seja atacada de forma despreparada.
Hälle e Häss agora podem se tocar, se abraçar, dormir juntos, acordar juntos, comer juntos e amarem-se como nunca puderam se amar antes. Häss ganhou uma aparência assombrosa, era alto e largo, lutava com tigres e javalis como se não fosse nada, vestia peles dos animais que matava, além de ter agora um cabelo azulado comprido e desgrenhado na maioria das vezes. Voltava das caçadas e fazia questão de primeiramente tomar um bom banho com sua amada Hälle.
Hälle fortaleceu-se na mata, tanto física quanto espiritualmente. Seu corpo ficou maior e mais fortalecido, sendo mais rápida e sagaz que uma onça. Se especializou em várias armas, além de desenvolver-se em outras áreas, como o desenho, a escultura e as artes mágicas.
No banho no lago, Häss e Hälle relembram de tudo que viveram e agradecem aos deuses pela bênção que era muito maior do que qualquer coisa que poderiam pedir. O casal termina as preces com um beijo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário